Era uma tarde dourada no Hipódromo Edmilson Moreira. O vento soprava macio vindo do Acaraú e as arquibancadas fervilhavam com o burburinho alegre de um tempo que não volta mais — mas insiste em galopar dentro da gente.
Eu estava ali, garoto, como sempre estive, ao lado do meu pai, Rubira Albuquerque, que não via a vida em anos, mas em páreos. Para ele, viver era alinhar-se no partidor com fé, correr o retão da existência com coragem e, se possível, cruzar o espelho na frente — ainda que fosse por pescoço.
Rubira, dono dos craques Dominó, Mandarim, PeterPan, Pagode e Cruzeiro. Cada um com seu estilo, cada um com sua história. Dominó era fogo nos cascos; Mandarim, pura elegância na raia. PeterPan, veloz como a infância que passou depressa demais. Pagode trazia música nas passadas. E Cruzeiro... ah, Cruzeiro corria como quem conhece o caminho de volta pra casa.
Naquele dia, os nomes dos antigos craques ecoavam pelo hipódromo como sussurros trazidos pelo vento. Via o passo elegante de Black Orion, o trotar firme de um incansável Swing, o faro certeiro de vitória em Japomar.
E então vinham outros, um a um, como se perfilassem no partidor da lembrança: Marítimo, Garboso, Satélite, Apatita, Mirambé, Íbis, Brilhantina, Mucuripe, Estrela, Nebulosa, Rigor, Tio Godoy, Crepúsculo, Quaró, Astra, Detetive, Trevo, Portinari, Sweet and Lover, Japomar Junior, Guequari, Maniador, Cambriole, Pensador, Joiosa, Gilda, Barbara, Sisi, Êlevo, Jaqueline, Zovvo, Parceirada, Walledon, Rebeca, Doridana, Belgrado, Bailarina, Flecha Cancan, Debutante, Safira, Django, Furacão, Tulipa, Detetive-B, Cléo, Pinóquio, Juriti, Cadetinho, Bacará, Maria Bonita…
Cada nome, uma história riscada na pista. Cada casco, uma batida no meu peito.
Na tribuna nobre do hipódromo, os grandes nomes do turfe estavam presentes — alguns em carne viva, outros em saudade eterna ou virados lenda de páreo corrido: José Maria Sampaio, que só botava cavalo na raia pra ganhar; Eduardo Sanford, bandeirinha atento, validando ou anulando a largada com a autoridade de quem entende o galope; e Antônio Félix Ibiapina, que dava a largada com braço firme e alma acelerada.
Nas arquibancadas, contando aos ouvintes da Rádio Iracema a história daquele páreo estavam José Aguiar Frota e José Fontineles, enquanto Edmilson Souza comentava com o peso de quem sabe ler um páreo no olhar do animal. Lulu Bento, treinador da coudelaria vencedora e esposo de Dona Iracema, comandava tudo no silêncio dos que fazem mais do que falam.
Na casa de apostas, Luis Bacural ou Claudio Gurgel gritavam o leilão, enquanto vi Martônio Barreto e Marcos Rangel fazendo fé com coragem de apostador de verdade. Lá do alto, João Alberto Adeodato vigiava com confiança a performance dos seus corredores da Coudelaria Santa Luzia. Dr. Carlos Saboya, com sua calma de quem já viu muitos discos finais, observava tudo com elegância. E por ali também circulavam Ildefonso Frota Carneiro, Renato Parente, Humberto Lopes, Gerardo Atibones, os irmãos Veimar, Edmilson e Diro Moreira, todos fiéis ao seu modo próprio de ver e viver o turfe. Pedro Guimarães, com alma de velho jóquei e memória de quem já viu cavalo voar, se misturava à lenda viva Zequinha Silvestre, da comissão de corrida, que lia um páreo como quem decifra o tempo.
No paddock, desfilavam com a elegância de quem conhece o peso do arreio os irmãos Viana — José, Leopoldo e Cornélio — ao lado de craques como J. Humberto, J. Alves e F. Costa, jóqueis de mãos leves como as de pianista e frieza calculada de enxadrista. E como não lembrar dos pioneiros que abriram as pistas do velho Prado? Bilau, Zeca Silvino, Vicente Marinheiro — nomes que ainda ecoam nas curvas da raia —, todos sob o olhar atento e a sabedoria do velho Raimundo Silvino, mestre das cocheiras, e do lendário tratador Cândido, que conhecia o cavalo pelo olhar e o estado do animal só de escutar o som dos cascos.
Enquanto isso, as moças elegantes desfilavam suas apostas e seus vestidos como se o mundo fosse só aquele instante. E talvez fosse mesmo.
A pista era um teatro da vida. Havia o favorito, a barbada, que às vezes decepcionava. Havia o azarão, aquele de pule alta, que surpreendia e fazia gente chorar de alegria e gritar feito menino. Havia tropeços, lesões, fotos na cabeceira, retões de superação. Como na vida.
A gente aposta em gente, em caminhos, em escolhas. Às vezes ganhamos com folga; outras, cruzamos em último. E há dias — os mais duros — em que nem largamos, ficamos no box, presos pelo medo ou por um acaso que a comissão não julga.
E no entanto, seguimos acreditando. Porque viver é isso: confiar no nosso “puro-sangue” interior, mesmo quando a pista está pesada.
Hoje, quando olho para trás, vejo que meu pai não era só criador de campeões. Era também domador de ilusões. E ensinava que, no fim das contas, não importa só vencer. Importa correr bonito. Com raça. Com honra.
E assim, sigo correndo. E quando, enfim, ouvir o estalo das portas se abrindo e o narrador bradar com alma: “Largaram!”, que eu esteja pronto para alinhar mais uma vez no partidor da vida — mesmo que seja o último páreo. Porque, no fundo, a vida é páreo corrido, e quem entrega o coração à pista nunca corre em vão.